segunda-feira, novembro 16, 2009

A criança e a educação fundamental de 9 anos (*)

Elvira Souza Lima

Estender a obrigatoriedade do período de escolarização da educação fundamental para 9 anos é uma tendência universal. A matrícula obrigatória da criança com seis anos completos na educação fundamental é um fato bastante comum na educação mundial.

A infância é um período de desenvolvimento da espécie humana, cuja importância vai ficando cada vez mais evidente à medida que avançam os conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro, mais especificamente, sobre a complexidade deste desenvolvimento nos primeiros anos da infância.

As descobertas na área da neurociência já são tão importantes que chegam a afetar a natureza de currículos da educação infantil em alguns países. É o caso, por exemplo, da França, que introduziu um currículo para a infância apoiado em pilares diferenciados dos que nortearam a educação da infância durante a maior parte do século XX. Nesse novo currículo, as práticas culturais da infância ganham relevo e o tempo é distribuído de forma que as atividades que envolvam música e movimento sejam equiparadas em importância às atividades mais especificamente voltadas para a apropriação da leitura e a escrita.

Busca-se, assim, uma escolarização que vise à formação da criança enquanto ser de cultura.

5 ou 6 anos?

As matrículas efetuadas para o 1º ano do ensino fundamental de 9 anos nos vários estados e municípios brasileiros utilizam critérios diferentes quanto à idade das crianças, sendo que em várias localidades são matriculadas crianças que não completaram 6 anos. Nestas situações, encontramos crianças que completarão 6 anos até 31 de março, 30 de junho ou até mesmo em 31 de dezembro.

Identificar as idades reais é importante, pois há diferenças sensíveis no desenvolvimento de uma criança que inicia o primeiro ano com 6 anos completos e aquela que passará parte ou todo o primeiro ano com 5 anos. Diferenças serão encontradas na oralidade, nos processos de atenção, nas formas de percepção, na perícia dos movimentos, no exercício da função simbólica.

O desenho das figuras geométricas e as possibilidades de registro também diferem: a criança de 5 anos exercita o traçado que a criança de 6 anos já realiza com maior perícia. A criança de 5 anos está desenvolvendo processos que já se tornaram aquisição na criança de 6 anos. Dessa forma, o planejamento da ação didática deverá levar em consideração as especificidades de um período da infância em que as etapas do processo de desenvolvimento biológico e cultural demandam situações pedagógicas diferenciadas.

Estruturas para o comportamento presente e estruturas para o comportamento futuro

Sob a perspectiva da neurociência e da teoria cultural-histórica do desenvolvimento humano, a espécie humana se caracteriza pela formação de redes neuronais e pelo desenvolvimento de funções que servem a propósitos do desenvolvimento em um período, ao mesmo tempo em que são base para o desenvolvimento futuro. Por exemplo, a brincadeira de faz-de-conta faz parte do desenvolvimento da função simbólica no período dos 3 aos 6 anos. As aprendizagens necessárias para se apropriar da leitura e da escrita, da linguagem matemática, assim como da física, da química e da música, se apóiam na função simbólica. Ou seja, aprendizagens que serão realizadas nos períodos subseqüentes, dos 7 aos 12 anos, terão tido componentes constituídos no período dos 3 aos 6 anos.

Assim, a brincadeira em suas várias formas e as práticas culturais da infância, que envolvem desenho, música e dança, proporcionarão oportunidades únicas de desenvolvimento e aprendizagens em períodos posteriores. Brinquedos e brincadeiras, músicas e poesias, festas e rituais são oportunidades para o desenvolvimento cultural da criança. A identidade e a possibilidade de se reconhecer no grupo são fatores importantes de confiança em si mesma, gerando iniciativa e autonomia em suas ações.

Muitas das condições que a criança precisa desenvolver para aprender a ler e a escrever, a se apropriar dos conhecimentos da matemática, das ciências, da história e dos outros conteúdos escolares são resultantes das práticas de infância. Assim, a criança “cria” condições de aprendizagem dos conhecimentos escolares através das brincadeiras, da prática cotidiana com a música, das atividades gráficas e de modelagem.

No processo de escolarização, para que a criança efetivamente se aproprie dos conhecimentos escolares ela dependerá do ensino dos conteúdos, do ensino das atividades de estudo e dependerá, também, de um currículo que inclua os conhecimentos formais, isto é, as ciências, as artes e os sistemas simbólicos, como a escrita, a linguagem matemática.

Levanta-se, então, a questão do planejamento. O planejamento precisa atender à diversidade própria da espécie e organizar, assim, o tempo de docência para as atividades centrais e as atividades complementares. O planejamento deve, também, incluir alternativas que poderão ser utilizadas para apoiar a aprendizagem de crianças que apresentem alguma lacuna ou fragmentação durante o processo de apropriação do conhecimento.

O planejamento diferenciado (1) é uma possibilidade para atender tanto as especificidades dos processos de desenvolvimento das crianças de 5, 6 e 7 anos nos anos iniciais, bem como resolver situações de não aprendizagem que ocorrem com freqüência neste período. Outra possibilidade é utilizar este tipo de planejamento para evitar situações em sala de aula que não levem à apropriação do conhecimento formal.

A educação para o mundo contemporâneo requer ênfase em alguns aspectos que não foram tão urgentes em outros tempos. Pensar criativamente é requisito para todos. Conhecimento é necessário, portanto há que haver docência de conteúdos. Estudar é necessário, caso contrário não há possibilidade de formação de memórias de longa duração.

O desafio da escola de hoje é formar a pessoa de hoje e o cidadão para a sociedade das próximas décadas.

(*) Texto original: A criança de 6 anos chega ao ensino fundamental, de Elvira Souza Lima
Inter Alia Comunicação e Cultura, São Paulo. livros@editorainteralia.com
(1) ver Planejamento Diferenciado, de Elvira Souza Lima, pela editora acima.

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