sexta-feira, outubro 15, 2010

Entrevista de Elvira Souza Lima para a jornalista Paula Caires (Outubro de 2009)

Entrevista concedida à Paula Caires (Revista Projetos Escolares Educação Infantil - Online Editora) em Outubro de 2009

Pergunta - Quais as principais diferenças do cérebro das crianças de 4, 5 e 6 anos de idade? Como funciona a memória da criança e quais seus níveis? Como desenvolvê-la e estimulá-la em seus diferentes graus com as crianças dessas idades?

Elvira Souza Lima - É importante entender que o desenvolvimento do ser humano acontece por períodos de tempo que não são divididos segundo anos cronológicos. Os períodos na infância acontecem em tempo maiores como cerca de 3 anos. Assim as crianças de 4, 5 e 6 anos pertencem a um período de desenvolvimento, no qual acontecem processos, como por exemplo, o desenvolvimento da função simbólica e a formação das figuras geométricas. A maturação do cérebro é progressiva e possibilita a ampliação de processos mentais, perícia do movimento, evolução da fala, por exemplo.

Ao longo deste processo a criança desenvolve a memória, criando acervos de experiências, imagens, sons de acordo com sua experimentação e ação nos contextos em que vive. Com o desenvolvimento da memória a criança também cria acervos para imaginar. A imaginação precisa ser desenvolvida na infância. Brincar, desenhar, cantar, dançar, ouvir histórias, representar no faz de conta são atividades essenciais para o desenvolvimento da criança neste período


Pergunta - Você diz que o desenvolvimento é função da cultura. Poderia explicar?

Elvira Souza Lima - Na verdade esta não é uma ideia recente, mas que tem sido comprovada recentemente com o avanço dos estudos e pesquisas sobre o cérebro humano. O conhecimento sobre o desenvolvimento na infância nos traz a necessidade de ver a criança como ser de cultura , pertencente à espécie humana: daí a importância de integrar os conhecimentos da Neurociência, da antropologia e das artes para que, desta integração, se retire um modelo de pensamento mais adequado para se abordar a infância.

A neurociência, principalmente, vem revelando a infância como um período de relevância para a formação humana, configurando, assim, uma nova dimensão da educação infantil. A escola para educação infantil é um espaço de formação humana das novas gerações, garantindo a continuidade da espécie e a integração das experiências culturais com as possibilidades tecnológicas da sociedade contemporânea.


Pergunta - Há diferenças nas formas de estímulos para cada idade? Se sim, quais?

Elvira Souza Lima - Sim, o que propiciamos à criança pequena deve ser adequado ao seu período de desenvolvimento. Por exemplo, desenhar é uma atividade fundamental dos 3 aos 6 anos. Ouvir músicas, cantarolar, dançar e cantar, experimentar sons, ouvir com atenção sons da natureza, por exemplo, são atividades importantes nos primeiros anos da infância. Propiciar estas experiências à criança significa, muitas vezes, criar condições para que ela faça isto, dar tempo a ela para realizar estas atividades e prosseguir nelas conforme desejar. Muitas vezes o adulto se preocupa muito em estimular a criança e não dá a ela o tempo necessário para que ela realize atividades em seu próprio tempo. O tempo de exploração dos objetos, de observação, de envolvimento com uma atividade depende do período de desenvolvimento. aprendemos muito observando a própria criança: ela nos ensina, também, como e durante quanto tempo ela se dedica a uma atividade.

Pergunta - Qual o papel das brincadeiras nesse processo? Quais brincadeiras você indicaria pela riqueza de recursos que oferece ao cérebro?

Elvira Souza Lima - Cada brincadeira mobiliza o cérebro da criança segundo os componentes de movimento, oralidade, ritmo, rima, sequência. Cada brincadeira promove o desenvolvimento de movimentos determinados do corpo, de sonorizações e linhas melódicas. Cada brincadeira apresenta, portanto, especificidades. A criança precisa realizar brincadeiras de movimento: andar, correr, saltar. Brincadeiras circulares como as brincadeiras de roda, cantadas ou declamadas. Brincadeiras que desenvolvem a percepção sonora e/ou visual. Brincadeiras que envolvem parlendas e quadrinhas. Todas as brincadeiras do folklore e as brincadeiras universais oferecem riqueza de experiências e oportunidades para a criança e atuam, também, no desenvolvimento da imaginação


Pergunta - Os contos infantis assumem essa mesma função? Se não, qual o papel também dos contos infantis?

Elvira Souza Lima - Os contos infantis tradicionais passaram de história oral para a escrita. Ou seja, uma tradição oral de séculos, por vezes, foram registradas em algumas culturas e a partir daí permaneceram como acervos para muitas gerações. Muitas histórias foram perpetuadas também pelas dramatizações, tanto com personagens como com bonecos (marionetes de muitos tipos diferentes). Mais recentemente estas histórias passaram a ser re-elaboradas em várias formas de mídia: filmes, animações, novelas e seriados, dramatizações teatrais, desenhos animado. Hoje as crianças têm várias fontes para a experiência com as histórias. Esta tradição gerou, também, a produção específica de literatura infantil e que tomou uma proporção inédita e importante nas últimas décadas.

História, contos, lendas e fábulas têm um papel importante na formação da criança e no desenvolvimento da memória e imaginação. Eles atuam na formação da estrutura da narrativa na memória, que proporciona muitos subsídios para desenvolvimento e aprendizagens posteriores, dentre as quais destacamos a apropriação da escrita e a atividade criativa da mente humana.


Pergunta - Qual a importância e o papel da música nesse processo de estímulo e desenvolvimento infantil?

Elvira Souza Lima - O papel da música é enorme, conforme constatado pelas pesquisas na àrea de neurociência. Sabemos disto, também, através da antropologia, que nos mostra o papel central que a música tem na organização dos grupos sociais. Na verdade, a história da evolução da espécie humana deixa bem claro que a música foi um dos fatores fundamentais de desenvolvimento da espécie, presente antes mesmo da fala. Para a criança, a música é fator de humanização, de congregação com os adultos e com as crianças mais velhas. Tem um papel na identidade cultural e é fator decisivo no desenvolvimento da função simbólica da criança.


Pergunta - Há diferenças de funções conforme o tipo de música trabalhada (diferentes ritmos, só cantada ou acompanhada de instrumento...)?

Elvira Souza Lima - Os diferentes ritmos, tonalidades, harmonização afetam diferentemente o cérebro. Da mesma maneira vocalizes e canto apresentam particularidades em relação à música instrumental no processamento pelo cérebro. Instrumentos e vozes apresentam um impacto no cérebro quando executadas conjuntamente que difere quando somente instrumento ou somente voz chegam ao cérebro. Porém, é importante salientar que todas as formas de música têm um impacto muito grande, como mostram as pesquisas mais recentes sobre música e cérebro. Também estas pesquisas revelam que os efeitos variam conforme a idade da pessoa. Certo é que para a criança pequena, a experiÊncia com a música cotidianamente traz impactos duradouros sobre o desenvolvimento infantil. Por isto a música deve estar presente em casa e na escola.

Pergunta - O que o processo de alfabetização deve priorizar para ser bem sucedido, independentemente da linha pedagógica seguida?

Elvira Souza Lima - Com certeza o desenvolvimento da função simbólica. A formação na memória das letras, sílabas e palavras e, fundamentalmente, as estruturas da sintaxe. A sintaxe, envolvendo o verbo de ação, principalmente, é eixo da aprendizagem da escrita e da leitura. Independemente do método, se a criança não aprender as dimensões da lingua escrita (sintaxe, semântica, léxico, fonologia e morfologia) não dominará a escrita. Qualquer método precisa atender à formação na memória dos conceitos de letra, sílaba, palavra, frase e texto.

Pergunta - Existe uma idade certa para dar início ao processo de alfabetização formal? Existe uma idade limite para que a alfabetização esteja concluída?

Elvira Souza Lima - Apropriar-se da língua escrita, sendo capaz de ler e de escrever uma língua é um processo bem longo. A escrita é muito complexa e tem vários níveis de apropriação: compreender poesia, escrever poesias, escrever um conto tem suas especificidades. Escrever um relatório científico tem outras. Um texto jurídico, outras. Assim, pode-se ir pela vida toda aperfeiçoando e expandindo a compreensão na leitura e capacidade na escrita.

Porém, toda criança com 3 anos de escolarização tem a possibilidade de ler compreendendo (ler é compreender) e de escrever textos de algumas linhas (5 a 7 no mínimo) com a sintaxe básica, com correção fonológia e ortográfica e utilizando palavras corretamente. Isto depende de ensino e prática cotidiana. Do ponto de vista do desenvolvimento, isto pode ser feito a partir do período de 6 a 8 anos.

Pergunta -Você defende a organização do currículo escolar por ciclos de aprendizagem. O que seriam e como funcionariam?

Elvira Souza Lima - Seria melhor pensar na organização curricular segundo os períodos de desenvolvimento humano, que em muitas prefeituras espalhadas por todo Brasil são denominados de ciclos de aprendizagem. A aprendizagem dos conteúdos escolares se apoia nos períodos de desenvolvimento. Não adianta querer adiantar certas aprendizagens na escola para as quais a criança depende da formação de estruturas no cérebro, estruturas estas que são formadas segundo condições próprias da espécie.


Pergunta - O que poderia ser dispensado das aulas pelo fato das crianças já trazerem consigo naturalmente?

Elvira Souza Lima - Desenhar as figuras geométricas, aprender as cores que estão em seu contexto, nomeá-las são coisas que fazem parte do desenvolvimento humano. Cantar, também. Temos várias aquisições na própria genética da espécie. A escola deve aproveitar estas características do desenvolvimento infantil para ampliar a experiência da criança em cada uma delas.

Por exemplo, trabalhar com as figuras geométricas para construir formas como com o tangran, fazer maquete de algum local como a escola ou o bairro ou ainda sobre o movimento dos astros são atividades escolares, que a criança só fará se for ensinada e orientada. Desta forma, o currículo deve partir do desenvolvimento humano , sempre com a preocupação de desenvolver a imaginação

Pergunta - Até que ponto a televisão e a internet ajudam ou atrapalham no processo de desenvolvimento da criança? Por favor, explique.

Elvira Souza Lima - Televisão e computador não podem extrapolar um tempo diário de uma a duas horas na vida da criança pequena. Em muito países a recomendação é de uma hora diária a partir dos 3 anos e alguns recomendam que a criança de até 2 anos não seja exposta a nenhum dos dois. Isto decorre de pesquisas sobre o desenvolvimento biológico e cultural da primeira infância, incluindo-se aí as pesquisas sobre o processo de maturação e desenvolvimento do cérebro infantil

Pergunta - O défict de atenção e a hiperatividade podem ter relação com a influência desses meios na vida das crianças ou esses trantornos da aprendizagem estão relacionados à condição genética da pessoa? Por favor, explique.

Elvira Souza Lima - Há um equívoco muito grande atualmente em considerar comportamentos normais das crianças como déficit de atenção e hiperatividade. Como consequência temos muitas crianças sendo medicadas erroneamente, com prejuízos imediatos sobre seu processo de desenvolvimento. Os comportamentos identificados como de hiperatividade e déficit de atenção são decorrentes, muitas vezes, dos contextos em que a criança vive, que oferecem poucas oportunidades para que a criança exerça o que é próprio da infância, sendo o brincar um dos mais importantes.


Um comentário:

Karen Fraser Colby de Mattos disse...

Estamos retomando a concepção de infância na escola e seus livros e artigos tem sido de muita valia para nossa reflexão.
Que outras recomendações bibliográficas teria sobre esse assunto?
obrigada,
Karen
karenfrasercolby-demattos@hotmail.com