“(...) A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos.”
Ailton Krenak
1. PRESSUPOSTOS
Somos seres sociais, dependemos de ações compartilhadas, de vários tipos de interação com o outro, das pessoas com quem mantemos relacionamento afetivo, bem como precisamos de um contexto cultural que nos dê suporte simbolicamente.
Uma ruptura no tecido social que nos acolhe e nos dá as bases simbólicas de pensamento e instrumentação para ação, acaba por provocar instabilidade no funcionamento do sistema emocional que, por sua vez, pode impactar a saúde do próprio corpo.
Com a atual pandemia, houve uma quebra momentânea no convívio social, afetando os laços de afetos e exercício da empatia pela suspensão de ações de comunicação social direta. Esta é uma experiência difícil para qualquer pessoa.
Sentimos uma vulnerabilidade física e psicológica, ficamos em quase constante estado de alerta. Nosso cérebro encontra-se acuado. No entanto, a modificação desta realidade não depende de nossa vontade. Temos um inimigo real, do qual ainda não temos proteção, nem sabemos como a situação irá evoluir.
Estamos inquietos, estamos com medo e procuramos navegar no cotidiano afetados por estas emoções, buscando seguir com alguma rotina que nos lembre, de alguma forma, a organização anterior em nosso dia a dia. A situação de medo e estresse que se instalou gera no cérebro a liberação de substâncias químicas negativas, digamos assim. Precisamos, na verdade, contrabalançar os processos químicos de stress no cérebro com processos químicos que nos fazem sentir bem.
Se não podemos mudar a realidade no momento, podemos modificar nossas reações incluindo atividades benéficas, que liberam substâncias químicas que nos fazem sentir bem e atingem a área de recompensa do cérebro.
A escola se apresenta, nesta situação, como um campo promissor de ação. Ela envolve várias gerações e, por sua própria natureza, implica um espaço cultural de interação humana, ao qual todos retornarão futuramente, mas que por ora funciona à distância,
2. A PEDAGOGIA E A DIDÁTICA
São várias as questões que são e serão levantadas na educação escolar a partir do aparecimento e expansão do coronavírus e a pandemia que se instalou com ele. Estas questões atingirão tanto o grupo de alunos como a equipe gestora e os professores. Novas demandas surgirão, com certeza.
Podemos pensar a curto e médio prazos.
No curto prazo, o aspecto mais discutido tem sido a utilização da educação à distância em substituição ao ensino presencial. E é natural que assim seja e que este tema seja tão discutido, uma vez que não há disponível um conhecimento pedagógico formulado e desenvolvido para o ensino à distância em tempo integral da carga horária, da Educação Infantil ao Ensino Médio. É importante destacar que porcentagem importante das crianças na maioria dos países não tem internet, nem equipamento mínimo necessário para realização de EAD. Portanto, outras formas de docência precisam ser criadas.
No médio prazo seremos chamados a equacionar os valores e comportamentos sociais dos quais, a partir da epidemia, precisaremos nos ocupar na escola, em todos os graus de ensino.
É de grande relevância trazer o fato de que a pedagogia vem sendo revisitada e ressignificada durante a pandemia e, particularmente, a didática.
O coronavírus (e suas surpreendentes consequências) trouxe
a didática para o primeiro plano da cena da educação. Depois de muito tempo centradas na avaliação, as questões do ensino foram colocadas em evidência pelo fechamento das escolas e nas variadas alternativas propostas e desenvolvidas para seguir com a escolarização das crianças e jovens.
DIDÁTICA é um dos componentes da pedagogia, ciência do ensinar com o objetivo de fazer o aluno se apropriar do conhecimento formal: o conteúdo, a metodologia, a aplicabilidade e o desenvolvimento do inconsciente cognitivo.
A didática tem princípios organizadores, método e conceitos como toda ciência. O professor estuda didática para conhecer todas suas dimensões e, a partir daí, formular seu ensino que incorpora a sua experiência (conhecimento pedagógico próprio) constituindo assim um estilo de ensinar.
Quando chamada a atender a demanda posta pelo surgimento do Covid19, a preocupação principal da escola é continuar ensinando para que os alunos não percam a “proximidade com o currículo”. Para fazer face ao problema, foi acionado imediatamente o ensino remoto.
Ensino remoto e ensino à distância
Há uma diferença importante em passar da sala de aula ao ensino online (chamado por alguns de ensino remoto) e realizar ensino à distância. Este último já existe há vários anos e tem um acervo de conhecimentos acumulados, enquanto que a transferência imediata do ensino presencial é inédito. O que ocorreu e continua ocorrendo nos diversos países foi a demanda pouco clara feita aos professores para que ministrassem suas aulas online. Realmente, a situação foi de emergência e não havia de imediato outro caminho. Para países em que o ensino online faz parte da formação dos professores, o fechamento das escolas aconteceu de maneira mais harmoniosa. O mesmo ocorreu em escolas particulares, principalmente, nos países em desenvolvimento. Isto tem demandado muitos esforços por parte dos professores que, muitas vezes, se frustram e com razão: é um desafio levar crianças a aprender conteúdos formais sem a presença do professor que é quem as guia.
Da mesma forma os pais foram envolvidos neste empenho para dar continuidade ao ensino sem disporem de conhecimento pedagógico, contando apenas com suas próprias memórias de seus anos como alunos. Na percepção da tela plana, de experiência limitada e de comunicação restrita, é difícil achar que se pode reproduzir o tecido social e cultural da sala de aula em casa.
Dentre tantas mensagens que recebi de gravações dos alunos para os professores, creio que a lucidez desta criança traduz com perfeição a complexidade da questão:
“Professora, desculpa te incomodar...mas eu queria falar que não estou aprendendo nada...a mãe não tem estas manias de ensinar que você tem... a mãe trabalha no restaurante, ela tem manias de fazer comida, não tem as manias de ensinar, eu queria falar isto”
A mensagem gravada por esta criança traduz com clareza o que muitos estão percebendo: ser professora não é uma atividade corriqueira. Ser professor ou professora, em todos os níveis de ensino, é ser um agente cultural de formação humana, é ser um socializador de métodos e conceitos, é participar da narrativa da vida de cada aluno, é conduzir as crianças e os jovens à cidadania, levando-os a se apropriarem dos conhecimentos formais que a humanidade produziu em sua longa caminhada.
Profissão muito prestigiada em vários países e, infelizmente pouco valorizada em muitos outros, o educador foi alçado na presente conjuntura a uma posição de destaque no mundo todo, na medida em que a escola mesma se tornou uma instituição cuja importância foi revelada pelos fatos.
A espécie humana pode aprender muito e muitas coisas na vida cotidiana, na família, na comunidade. Porém os conhecimentos escolares, que são criados e desenvolvidos historicamente, precisam de um mestre que possibilite o caminhar de cada aluno.
Todos dependem do professor. Os cientistas que estão na linha de frente de combate ao coronavírus foram ensinados por professores, o mesmo podemos dizer dos profissionais da saúde. Assim acontece com todas as profissões. O professor garante a continuidade da espécie na transmissão do conhecimento acumulado, levando as novas gerações a continuar o percurso da espécie humana.
3. CURRÍCULO EMERGENCIAL DURANTE E APÓS PANDEMIA
O essencial de um currículo emergencial neste contexto é reestruturar e ampliar as ações educativas que promovam a humanização das novas gerações ao mesmo tempo em que ampliem os conhecimentos dos educadores.
Propomos, assim, apresentar e discutir os componentes principais de um currículo emergencial que atenda ao desenvolvimento humano e à vida social em um momento excepcional de novos desafios para as gerações atuais.
Impõe-se dar mais atenção aos sistemas expressivos, função simbólica, emoção e empatia, favorecer comportamentos criativos e estimular cooperação integrados aos conteúdos das áreas de conhecimento. Além disso, destacamos a formação de comportamentos necessários para as aprendizagens escolares, tais como atividades de estudo, comportamento leitor, metodologia de pesquisa e escrita.
A situação de ensino à distância provocada pela pandemia revelou que muitos alunos não tem autonomia necessária para estudar e tomar decisões a respeito da informação. Revelou, também, que muitos alunos não dominam as atividades de estudo e não tem conhecimento sobre métodos de investigação.
Para a compreensão do momento inédito que vivemos, precisamos de uma fala interna, tanto para o educador como para os alunos, que contenha um acervo amplo de vocabulário, conceitos e instrumentos de pensamento, em que lógica e metáforas se destacam.
Igualmente observamos que não podemos prescindir dos conhecimentos científicos e matemáticos, que conferem ao pensamento possibilidades de aprofundamento das questões e movimentos inovadores para reflexão sobre e atuação no contexto da pandemia e seu impacto na organização social dos povos e de realinhamento dos princípios que regem a vida cotidiana.
Observamos, ainda, que a sensibilidade e a formação estética se destacam como prioridades do momento, uma vez que o impacto das artes na liberação de químicas de bem estar e ativação da área de recompensa do cérebro é crucial para buscar um equilíbrio emocional com diminuição do medo, angústia, ansiedade que a pandemia do Covid19 acarreta.
Pausas e Respiração
O cérebro precisa de pausas.
Isto significa que precisa de sono, então, uma das vertentes principais deste novo momento em que estamos todos imersos é garantir o sono, preservando os olhos e o cérebro da luz das telas de celular e computador pelo menos uma hora antes de dormir.
O cérebro precisa de pequenos períodos de repouso, 10 a 15 minutos, duas a quatro vezes por dia, ao menos. Estes intervalos contribuem para não haver sobrecargas químicas no cérebro, evitando o estresse, que libera cortisol.
Pausas na rotina diária escolar podem ser realizadas com introdução de ações que liberam dopamina e serotonina, como ouvir música instrumental, ouvir música com lírica e cantar junto, cantar música com gestos coreografados, realizar rotinas com movimentos corporais e/ou gestos. A educação física é um componente curricular que pode (e deve) passar a contribuir de forma mais ampla no cotidiano da escola. O movimento em si, como se sabe, é um eixo fundamental de desenvolvimento na espécie humana e tem um impacto considerável no bom funcionamento do cérebro. Em outras palavras, contribui para a saúde mental.
O cérebro precisa de oxigênio, então práticas de respiração lenta e profunda contribuem muito para aliviar tensão e para criar um contexto mental propício à aprendizagem. Será de grande valia introduzir 1 a 3 minutos de exercícios de respiração no início de cada aula, professor e alunos conjuntamente.
Deve-se considerar, também, a introdução de meditação como uma forma de suporte para os professores e gestores. Na realidade, a formação continuada deverá ampliar sua abrangência incluindo o bem estar dos professores como um dos seus objetivos.
Empatia
A empatia deve ser uma prioridade ao elaborar o currículo. É desejável que ações que requerem agir com empatia sejam incluídas de modo constante, abrangendo as várias áreas de conhecimento.
Destacamos, entre elas, ouvir o outro, compartilhar, deliberar conjuntamente, olhar para o interlocutor, estabelecer tons de voz acolhedores, manter-se bem humorado, criar gestos significativos que possam ser feitos à distância, programar atividades culturais que oferecem condições e promovem possibilidades de empatia. Muita dentre elas são as atividades culturais com base musical e/ou poética
Criar usos semânticos novos, ou seja, introduzir novas palavras que traduzam aspectos da situação de exceção que vivemos.
Pode-se desenvolver empatia por situações de contágio emocional, como é o caso daquelas que tenham base musical e poética. São exemplos: música, canto coral, jogral, recitação de poemas, cantigas quadrinhas e parlendas, músicas coreografas com gestos e movimentos
Retorno à escola
Quando pensamos no retorno à escola há que se considerar que não é um retorno como se houvesse sido apenas um período de afastamento. O retorno não neutralizará os sentimentos experimentados quando do isolamento social, além de que as ameaças continuam e ninguém sabe qual será o comportamento do vírus, portanto as emoções e afetividade terão um papel importante nos meses após o retorno.
Os adultos da escola estarão ainda em situação de risco, portanto, precisam também serem acolhidos e respeitados em seu fazer pedagógico. Necessitarão de atualização constante sobre a evolução da pandemia e, consequentemente, fazer revisões das normas adotadas à medida que saiam novas informações.
Precisarão de suporte emocional mútuo e propostas coletivas de trabalho
4. QUAL EDUCAÇÃO PARA A INFÂNCIA APÓS PANDEMIA?
Será necessário priorizar os sistemas expressivos no currículo, ampliar práticas várias de movimento com o corpo e favorecer situações pedagógicas lúdicas.
Sistemas expressivos são as várias formas de ação humana que tem como base a emoção, entre as quais destacamos a literatura, poesia e a música.
Literatura e cérebro
Muito estudado na última década, o impacto da literatura no funcionamento do cérebro merece ser considerado para elevar a literatura a um patamar de centralidade no currículo escolar desde a educação infantil. É uma das atividades que movimenta diversas áreas abrangendo praticamente todo o cérebro. Por ser uma produção estética, a leitura da obra literária envolve o sistema emocional, a função simbólica e mobiliza a imaginação, tendendo a levar a pessoa a um estado de bem estar. A narrativa na obra literária ativa a narrativa individual do leitor, suas memórias pessoais e as emoções a elas anexadas.
Por mobilizar inúmeras áreas do cérebro localizadas nos diferentes lobos, integrando-as, a leitura de obras de literatura é altamente recomendável.
Música e poesia
A criança em seus primeiros anos de vida se apropria das formas humanas de comunicação, forma-se como um ser de cultura. Desta forma, a escola de educação infantil tem como eixo importante a formação cultural da criança. Com a pandemia, com o retorno à escola, atenção extra deve ser dada à programação de ações que respeitem o afastamento físico mas que, ao mesmo tempo, promovam sentimentos de pertencimento ao grupo. Ouvir histórias e poemas em grupo (mesmo quando sentados à distância) cria um ambiente afetivo, propício à comunicação e partilha de narrativa e significados.
Um grande recurso para proporcionar a experiência de grupo é a música.
A música atua no cérebro promovendo o contágio pelo sistema emocional e músicas coreografadas ou cantadas em coral acionam os neurônios espelho, criando, assim, uma experiência compartilhada. Combinando música com movimentos e gestos, cria-se uma coreografia que pode ser executada guardando o distanciamento físico. Dança, por integrar padrões de movimento e música, atinge diretamente as zonas de recompensa do cérebro.
O interessante é que estas propostas educativas envolvendo contação e dramatização de histórias, literatura, poesia, música e dança são complementares entre si e, quando organizadas em um currículo semanal com ocorrência de uma ou mais modalidades por dia, garantem à criança experiências emocionais positivas, que contribuem para contrabalançar os fatores restritivos de proximidade física.
5. CHUVA DE “PARAQUEDAS COLORIDOS”
Krenak (2019) sugere que para “adiar o fim do mundo” é necessário abrir a mente e discutir seriamente o futuro da espécie em harmonia com a natureza, abandonando de vez a exploração predatória bem como ampliando os diálogos entre os povos.
É inspirado pela sabedoria dos povos indígenas que sugiro a adoção de uma visão positiva da educação como a saída possível para o cinzento do tempo que estamos vivendo.
É um momento delicado e importante. É a Educação que se coloca como o espaço de diálogo mais amplamente acessível a toda a população mundial. A metáfora que nos guia é, como convidou Krenak, “abrindo paraquedas coloridos. ”
Nosso desafio, no momento, é construir paraquedas coloridos!
Paraquedas são as ideias, as emoções, os conhecimentos destinados a promover a justiça social e o acesso ao que de melhor a humanidade produziu até o momento nas artes, nas ciências, na cultura, na linguagem.
Na escola podemos traduzir por desenhar cenários educativos, construir formas de ensino, formular currículos que garantam o respeito à experiência humana, em sua diversidade. Promover contextos educativos para o desenvolvimento humano: contextos educativos onde a empatia, o acolhimento e a tolerância, determinarão um ambiente mais propício à aprendizagem de todos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola é um espaço de cultura e assim vai permanecer. O mesmo acontece com o professor: agente de cultura e formador de novas gerações
Estamos aprendendo que os pais não substituem o professor: o professor é um profissional que detém um conhecimento pedagógico específico e estruturado, formado a partir de seus estudos e da prática cotidiana com um grupo de alunos no espaço especializado da educação. Pai e mãe não dispõem deste conhecimento, a menos que sejam, eles próprios, professores, e o espaço domiciliar não pode reproduzir o espaço educativo da escola.
Aprendemos que a escola é um espaço de domínio da pedagogia, ciência que emergiu com destaque na situação da pandemia. A questão central não é a oposição de ensino presencial versus ensino à distância, embora tenha sido esta relação a primeira a emergir no discurso educacional nas primeiras semanas de isolamento físico. O uso da tecnologia para garantir a continuidade das aulas mostrou que o conhecimento pedagógico é essencial. A mera utilização das tecnologias disponíveis não é suficiente para levar ao processo de aprendizagem de alunos das várias idades submetidos a aulas de todas as áreas de conhecimento.
É a partir da didática, na qual o professor se apoia, que se poderá incluir no projeto educacional o acolhimento do aluno e este será a agenda no retorno às aulas.
Quanto melhor o ensino, mais ele será um fator de formação humana, maiores as possibilidade de formação de memórias de longa duração, de instrumentos para o pensamento, reflexão, formação de conceitos, organização interna e argumentação.
Em resumo: ensinar de forma que as experiências do educador e dos educandos na relação pedagógica e no espaço educativo sejam valorizadas e vivenciadas como experiências humanas fundamentais para o desenvolvimento de todos e de cada um.
A considerar durante a pandemia antes e após o retorno à escola:
Empatia Emoção Memória Imaginação Curiosidade
Sistemas expressivos Sistemas simbólicos
Conhecimento científico Conhecimento linguístico
Arte
Referências:
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Para saber mais, veja da autora:
Atividades de Estudo, São Paulo: Editora Inter Alia
Memória e Imaginação, São Paulo: Editora Inter Alia
Currículo, Comunicação e Cultura, São Paulo: Editora Inter Alia
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