MINHA HOMENAGEM E AGRADECIMENTO ÀS CRIANÇAS
ELVIRA SOUZA LIMA
Hoje no Dia das Crianças escrevo em homenagem a todas as crianças que fizeram a pessoa que sou hoje. Começo pelos irmãos mais novos, que ajudei a cuidar ainda criança, eu também.
Minhas duas primeiras sobrinhas que nasceram enquanto eu ainda estudava
psicologia e que foram as primeiras, com suas vivacidades e
brincadeiras, a colocar a semente da dúvida sobre alguns aspectos das
teorias que estudava na PUC. Principalmente os testes psicológicos e
Piaget. Suspeitei vagamente que havia mais coisas entre o céu e a terra
do que a simples teoria.
Às crianças que dei aula de música e
piano. Na época não entendia nada da reação delas, maravilhosa, à
música. Mas tinha o maior prazer em ensinar. Ficou na minha memória:
ensinar precisa dar prazer a quem ensina. Às crianças com síndrome
de Down, da APAE de São Caetano, que toleraram, com bom humor até,a
ignorância nossa sobre elas. Deve ter sido difuso o sentimento, mas
lembro que me sentia ignorante quando saia de lá dia após dia. O
encontro com a diversidade cultural em Paris: crianças imigrantes,
crianças francesas de classe popular e de classes abastadas, todas
juntas na mesma escola. Imigrantes da Europa, mas também imigrantes do
Marrocos, África, exiladas do Brasil e da Argentina, crianças que
falavam 5, 7, 10 línguas diferentes na mesma escola e um mundo de
experiências culturais diversas no mesmo espaço. Um choque e a
descoberta de que certas coisas são comuns a todas crianças e superam
barreiras: as brincadeiras, a música e a comunicação por movimentos.
Às crianças vítimas de regimes autoritários que conheci na França,
crianças que não foram poupadas pela ditadura, exiladas. Em especial, às
crianças que chegaram a ser expostas à tortura dos pais, aqui no
Brasil. Às crianças pequenas na periferia de São Paulo, do
Movimento Luta por creches. E a todas a que segui conhecendo pelas
creches em São Paulo.
MEUS FILHOS que nasceram no meio da
diversidade de línguas e culturas. E que me surpreendiam a cada dia
como, ainda bebês, percebiam e lidavam bem com as diferenças culturais.
Não sabíamos o que sabemos hoje sobre o desenvolvimento infantil. Eles,
então, colocaram as perguntas certas na minha cabeça. E me ensinaram,
também, que a diversidade da espécie humana é uma riqueza, não um
problema. Com eles comecei a suspeitar que a experiência cultural nos
define como pessoas e que é um desafio conviver com crianças que trazem
na sua própria pessoa as marcas de comportamentos culturais que não
partilhamos. Mesmo quando estas crianças são nossos filhos. Cuidei muito
e resisti a pedidos de pesquisadores que queriam pesquisar meus filhos.
Era o início da era Vygotsky. Meus filhos que foram parceiras nas
minhas idas e vindas e que me ensinaram muito do que sei sobre crianças
de outras culturas. Homenageio, também, todos os amigos de meus
filhos, no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa. Com todos eles aprendi
a arte da tolerância onde ela é mais difícil, no cotidiano, dentro de
sua própria casa.
As crianças indígenas que me ensinaram , entre
tantas coisas, que o Rio Amazonas tem várias cores e que a cor da árvore
depende da hora do dia. Que desenhar é uma atividade absolutamente
séria, como é, também, ouvir a natureza. As crianças excluídas, de
rua, sem teto, sem terra, trabalhadores infantis. Crianças que são
capazes de brincar de casinha no chão da comunidade de favela no Rio,
circundadas por policiais fortemente armados. Crianças latinas e negras
nos Estados Unidos, nos guetos de Chicago e em New York. Crianças
latinas, na Califórnia, fracassos escolares absolutos que acabam
aprendendo e bem, já na quinta série, a ler e a escrever. Elas me
ensinaram que é possível aprender, que todas as crianças podem aprender.
Agradeço a elas terem me ensinado procurar as raízes do fracasso na
pedagogia.
Especialmente às crianças negras, filhas de prisioneiros,
em Washington. A capacidade destas crianças em lidarem com a separação,
às vezes de pai e mãe feitos prisioneiros, marcou para sempre minha
memória. Principalmente o fato de como a literatura foi eixo de
reconstituição da família, de retorno aos estudos destes pais e de como
as crianças foram a razão das mudanças. Sabemos hoje perfeitamente que o
cérebro se transforma e como o faz. Mas na época não sabíamos.
Finalmente a todas as crianças de escolas públicas de tantas cidades nas
quais trabalhei e trabalho, que me revelaram que, sim, querem aprender.
E, principalmente, que podem aprender, apesar de todas as
adversidades. Crianças que ainda têm paciência para tentar mais uma
vez, apesar de estarem há anos na escola sem saber, às vezes, as letras.
Que, apesar do peso horrível que é o fato de serem estigmatizadas como
pessoas incapazes de aprender, seguem tentando e que desabrocham pelo
simples fato de encontrar alguém pela frente que acredita que elas são
absolutamente capazes.
Tive grandes mestres na minha vida.
Cientistas e artistas. Mestres com os quais tive a possibilidade de
contato direto e tantos outros através dos livros. A pesquisa, o
conhecimento, as teorias são absolutamente necessárias. Porém, tanto na
minha trajetória profissional, principalmente como pesquisadora, como
na vida pessoal eu devo à convivência com tantas e tantas crianças, de
várias etnias, de todas as classes sociais, de inúmeras culturas o que
consegui acumular de sabedoria.
E no dia das crianças, mais do que
presentear, é importante homenagear as crianças e lembrar que elas são
formadas por nós, a geração de adultos. E que nós somos advertidos por
elas quando nos equivocamos. Finalmente que, permanecendo com mente e
coração abertos, vamos aprender a ver nos comportamentos das crianças
a consequência e o resultado de nossas próprias ações.
Termino me
dando conta da quantidade de crianças vivendo em minha memória e como
várias delas surgiram com seus rostos reais em tantos contextos pelo
mundo enquanto escrevia. E quanta emoção estas lembranças me trazem e
quanto sou grata a meus filhos por terem partilhado este meu percurso
com generosidade.
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