sexta-feira, outubro 12, 2012

MINHA HOMENAGEM E AGRADECIMENTO ÀS CRIANÇAS

 ELVIRA SOUZA LIMA
Hoje no Dia das Crianças escrevo em homenagem a todas as crianças que fizeram a pessoa que sou hoje. Começo pelos irmãos mais novos, que ajudei a cuidar ainda criança, eu também. Minhas duas primeiras sobrinhas que nasceram enquanto eu ainda estudava psicologia e que foram as primeiras, com suas vivacidades e brincadeiras, a colocar a semente da dúvida sobre alguns aspectos das teorias que estudava na PUC. Principalmente os testes psicológicos e Piaget. Suspeitei vagamente que havia mais coisas entre o céu e a terra do que a simples teoria.

Às crianças que dei aula de música e piano. Na época não entendia nada da reação delas, maravilhosa, à música. Mas tinha o maior prazer em ensinar. Ficou na minha memória: ensinar precisa dar prazer a quem ensina.
Às crianças com síndrome de Down, da APAE de São Caetano, que toleraram, com bom humor até,a ignorância nossa sobre elas. Deve ter sido difuso o sentimento, mas lembro que me sentia ignorante quando saia de lá dia após dia. O encontro com a diversidade cultural em Paris: crianças imigrantes, crianças francesas de classe popular e de classes abastadas, todas juntas na mesma escola. Imigrantes da Europa, mas também imigrantes do Marrocos, África, exiladas do Brasil e da Argentina, crianças que falavam 5, 7, 10 línguas diferentes na mesma escola e um mundo de experiências culturais diversas no mesmo espaço. Um choque e a descoberta de que certas coisas são comuns a todas crianças e superam barreiras: as brincadeiras, a música e a comunicação por movimentos.

Às crianças vítimas de regimes autoritários que conheci na França, crianças que não foram poupadas pela ditadura, exiladas. Em especial, às crianças que chegaram a ser expostas à tortura dos pais, aqui no Brasil. Às crianças pequenas na periferia de São Paulo, do Movimento Luta por creches. E a todas a que segui conhecendo pelas creches em São Paulo.
 
MEUS FILHOS que nasceram no meio da diversidade de línguas e culturas. E que me surpreendiam a cada dia como, ainda bebês, percebiam e lidavam bem com as diferenças culturais. Não sabíamos o que sabemos hoje sobre o desenvolvimento infantil. Eles, então, colocaram as perguntas certas na minha cabeça. E me ensinaram, também, que a diversidade da espécie humana é uma riqueza, não um problema. Com eles comecei a suspeitar que a experiência cultural nos define como pessoas e que é um desafio conviver com crianças que trazem na sua própria pessoa as marcas de comportamentos culturais que não partilhamos. Mesmo quando estas crianças são nossos filhos. Cuidei muito e resisti a pedidos de pesquisadores que queriam pesquisar meus filhos. Era o início da era Vygotsky. Meus filhos que foram parceiras nas minhas idas e vindas e que me ensinaram muito do que sei sobre crianças de outras culturas. Homenageio, também, todos os amigos de meus filhos, no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa. Com todos eles aprendi a arte da tolerância onde ela é mais difícil, no cotidiano, dentro de sua própria casa.

As crianças indígenas que me ensinaram , entre tantas coisas, que o Rio Amazonas tem várias cores e que a cor da árvore depende da hora do dia. Que desenhar é uma atividade absolutamente séria, como é, também, ouvir a natureza. As crianças excluídas, de rua, sem teto, sem terra, trabalhadores infantis. Crianças que são capazes de brincar de casinha no chão da comunidade de favela no Rio, circundadas por policiais fortemente armados. Crianças latinas e negras nos Estados Unidos, nos guetos de Chicago e em New York. Crianças latinas, na Califórnia, fracassos escolares absolutos que acabam aprendendo e bem, já na quinta série, a ler e a escrever. Elas me ensinaram que é possível aprender, que todas as crianças podem aprender. Agradeço a elas terem me ensinado procurar as raízes do fracasso na pedagogia.
Especialmente às crianças negras, filhas de prisioneiros, em Washington. A capacidade destas crianças em lidarem com a separação, às vezes de pai e mãe feitos prisioneiros, marcou para sempre minha memória. Principalmente o fato de como a literatura foi eixo de reconstituição da família, de retorno aos estudos destes pais e de como as crianças foram a razão das mudanças. Sabemos hoje perfeitamente que o cérebro se transforma e como o faz. Mas na época não sabíamos.

Finalmente a todas as crianças de escolas públicas de tantas cidades nas quais trabalhei e trabalho, que me revelaram que, sim, querem aprender. E, principalmente, que podem aprender, apesar de todas as adversidades. Crianças que ainda têm paciência para tentar mais uma vez, apesar de estarem há anos na escola sem saber, às vezes, as letras. Que, apesar do peso horrível que é o fato de serem estigmatizadas como pessoas incapazes de aprender, seguem tentando e que desabrocham pelo simples fato de encontrar alguém pela frente que acredita que elas são absolutamente capazes.

Tive grandes mestres na minha vida. Cientistas e artistas. Mestres com os quais tive a possibilidade de contato direto e tantos outros através dos livros. A pesquisa, o conhecimento, as teorias são absolutamente necessárias. Porém, tanto na minha trajetória profissional, principalmente como pesquisadora, como na vida pessoal eu devo à convivência com tantas e tantas crianças, de várias etnias, de todas as classes sociais, de inúmeras culturas o que consegui acumular de sabedoria.
E no dia das crianças, mais do que presentear, é importante homenagear as crianças e lembrar que elas são formadas por nós, a geração de adultos. E que nós somos advertidos por elas quando nos equivocamos. Finalmente que, permanecendo com mente e coração abertos, vamos aprender a ver nos comportamentos das crianças a consequência e o resultado de nossas próprias ações.

Termino me dando conta da quantidade de crianças vivendo em minha memória e como várias delas surgiram com seus rostos reais em tantos contextos pelo mundo enquanto escrevia. E quanta emoção estas lembranças me trazem e quanto sou grata a meus filhos por terem partilhado este meu percurso com generosidade.

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